“[…] a destruição do passado, ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas é um dos fenômenos mais lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo sem qualquer relação com o passado público em que vivem.”
Eric Hobsbawm
Arraial Velho, Freguesia Velha, Paranapanema, Nossa Senhora da Conceição de Capão Bonito. Às margens do Rio das Almas um povoado desenvolveu-se e, em migração, foi prosperando. Seu capão de mato em coração foi receptivo aos tropeiros de longínquas origens, e gameleiros acolhedores, gradativa e fortemente estabeleceram as profundas raízes dessa comunidade. Nesta história da formação de Capão Bonito, sólidas bases culturais surgiram e neste grande caldeirão – ou em nossa Gamela cultural – é imprescindível conta-la e reconta-la com a presença daqueles que foram agregadores dos nossos valores. Uma dessas notáveis pessoas é, sem sombra de dúvida, Dulce Guimarães de Carvalho, professora, diretora, poeta, contista, cronista e jornalista, que aqui viveu entre 1966 e 1988.
Para tanto, iniciaremos com uma breve discussão sobre a importância da memória para a cidade a partir dos artigos de Giseli Rodrigues e Neli Machado e de Antonio Candido:
Entre os diversos aspectos da identidade contemporânea, é a memória o mecanismo principal para a construção da identidade social e local. A identidade se constrói em um indivíduo a partir de visões do mundo, ideologias políticas e experiências históricas […]”[1]
Se a “identidade se constrói em um indivíduo a partir de visões de mundo, ideologias políticas e experiências históricas”, cabe a quem detém o conhecimento das histórias do passado, das personalidades, das obras de arte etc, enfim, tudo aquilo que constitui parte da Memória, dar continuidade, passar adiante todo o conhecimento “para evitar o esquecimento […] do passado.”[2]
Neste sentido, nós como educadores, podemos contribuir com o “não-esquecimento”, lutando para que a memória se mantenha ativa e que nossa cidade não se torne
“uma cidade largada às moscas, onde qualquer um vem e pega o que tiver de melhor e vai embora, onde os cidadãos vivem individualmente, sem se preocupar com o social, uma cidade estagnada econômica e socialmente, violenta e pobre.”[3]
Segundo Candido, a Literatura é “fator indispensável de humanização”[4], sendo assim, podemos traçar um paralelo com as ideias expressas por Rodrigues e Machado a fim de demonstrar a importância da Literatura como instrumento de “construção da identidade social”.
Por humanização, levaremos em conta, o conceito de Candido[5].
Portanto essa noção de humanização que a literatura desenvolve em cada indivíduo é responsável, também, pela preocupação da preservação da memória. Podendo construir, no meio em que vive, afinidade com seu passado histórico.
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A citação de Hobsbawm, usada aqui como epígrafe, dá o tom desta primeira iniciativa do Resgate e Valoração da produção literária de Dulce Guimarães de Carvalho, reforçando a importância de haver um olhar atento para esta que, talvez, seja a primeira mulher representante da Literatura capão-bonitense.
Tentaremos, com uma nota biográfica e uma pequena amostra de seus escritos, mostrar a relevância de Dulce Guimarães no campo cultural de Capão Bonito. Para isso foi-nos permitido o acesso a seu espólio, através de sua herdeira, a sua filha Ana Karina Guimarães Carvalho, com a pretensão de deixar os textos acessíveis à leitura e estudo.
Consideramos muito válida a defesa do Direito à Literatura de Antonio Candido, sobretudo quando diz que “uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” e com isso, consideramos (e tentaremos assegurar) um direito de todo capão-bonitense, nascido aqui ou não, o acesso à literatura produzida em Capão Bonito. Começando pela produção de Dulce Guimarães.
Embora seja uma iniciativa importante, ressaltamos que é, ainda, um primeiro passo para a divulgação da obra de Dulce Guimarães.
Pretendemos, também, que seja um grande passo para que Capão Bonito seja incluída no roteiro literário do interior paulista.
Carlos Eduardo Souza Queiroz
[1] RODRIGUES, Giseli e MACHADO, Neli. 2010, p. 23.
[4] CANDIDO, Antonio. Direito à Literatura In: Vários Escritos. 6º ed. Rio de Janeiro, 2017. p. 175
[5] Cf. “o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetras nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor.” pg. 180.