Se não for adeus, ao menos até breve

Notícia publicada em 28 de agosto de 2018

O BANDEIRANTE

Memória

Se não for adeus, ao menos até breve

Diretora de escola, jornalista, poeta e ainda letrista, Dulce Guimarães – falecida aos 53 anos, na semana passada – deixa um vazio no já árido panorama intelectual de Capão Bonito. Uma perda a ser reparada pelas mulheres que souberam tomar a sua figura como exemplo de coragem.

Solange Gonçalves

Não me lembro de outra ocasião. Muito provavelmente seja mesmo essa a primeira em que a chamo simplesmente Dulce. Dulce Guimarães Carvalho, morta no sábado último aos 53 anos, foi para mim sempre a “Dona” Dulce. A diretora do colégio ao qual meus pais confiaram a minha educação. O “Dona” não pelo medo. Sempre pelo respeito e pela admiração (da qual não tive chance de dizer-lhe em vida) que invariavelmente me inspirava.

Depois que voltei a Capão Bonito, cidade em que nasci e da qual me separei aos 17 anos incompletos para retornar somente nove anos mais tarde, Dulce começava a me encontrar, nas ruas ou na redação, não mais como a aluna do então CERV, mas já como a jornalista responsável pelO Bandeirante, o semanário que, também com sua ajuda, pode permanecer em pé, quando talvez muitos já desacreditassem dessa possibilidade. Digo, sem dúvida e sem modéstia, que perdemos – se não a maior, pelo menos uma das nossas grandes admiradoras, na conotação de incentivo e confiança que tal termo inspira.

Não me encontrava em Capão Bonito quando Dulce faleceu. Por esses motivos que não consegue se explicar, todos os contatos que tentaram comigo para avisar-me de fato tão doloroso, foram em vão. Quando soube da morte de Dulce, ela já havia sido sepultada. Como muitos, me emocionei. Como tantos outros – e talvez como ela mesma desejasse que fizéssemos – consegui, de um modo um tanto forçado, transferir a dor para a “maturidade” daqueles que conseguem encarar a morte como um simples desfecho de um ciclo biológico que, ao nascermos, já sabemos finito.

A morte dos grandes

Como dizia “Cininha” (ou Dulcina, sua única irmã) – durante o velório realizado nas dependências do EEPSG Dr. Raul Venturelli – ela (Dulce) “morreu como morrem os grandes”. Ou seja, sem molestar ninguém, exatamente como desejava. Exatamente como viveu.

Dulce Guimarães, poucos minutos antes das 18h do último sábado, saía do banho quando caiu próxima à porta do banheiro. Com ela, em casa, encontrava-se apenas Ana Karina, caçula e única filha entre dois homens: Clóvis Alberto (“Bororó”) e Oswaldo (“Nenê” que herdou da mãe e do avô o gosto pela poesia). Ana Karina diz aos familiares e amigos que pensa ter ouvido um chamado da mãe, quando essa caía. Karina gritou do quarto mas não obteve resposta. Telefonou, primeiramente para a professora Heloísa Arrunátegui – uma das melhores amigas de Dulce – mas essa não se encontrava em casa. Procurou por outra amiga e colega da mãe – Emília Miyada, que chegou rapidamente, mas, apesar das massagens e tentativas de recuperação da respiração não havia mais tempo. Dulce Guimarães deu entrada na Sant Cas Local já sem vida.

Jaqueline, uma das noras, conta que Dulce tinha há anos, fortes dores de cabeça. Foi à nora que ela afirmou uma vez, lembrar-se de que essa dor a acompanhava desde os 15 anos de idade. Todos os meios foram tentados para aliviá-la: das simples ingestão de remédios (fortes) à acumpultura.

Severidade e consciência

Batizada Dulce Vieira Guimarães, natural de Sorocaba, a diretora do EEPSG Dr. Raul Venturelli desde 71m chegou a Capão Bonito em 67, como professora de Português. Viúva desde 77, do também professor Clóvis Lacerda Carvalho, Dulce foi jornalista e poeta amadora segundo ela mesma colocava. Exigente ao extremo – com os outros e, principalmente consigo mesma – passou os seus mais fortes valores e ideais no discurso proferido por ocasião da formatura de uma nova turma do curso Magistério do “Raul Venturelli”, em dezembro do ano passado.

No discurso, talvez o momento em que Dulce tenha solicitado com maior eloquência que acompanhassem sua análise, a uma certa altura destaca: “Faz-se necessário rever uma Filosofia da Educação – preparar um homem para uma vida humana, não para transformar-se em lixo que pode ser comido por ratos, ou ratos que podem comer o lixo. Todos temos muita pena daqueles que vivem de restos mas não nos indignamos suficientemente contra os que põe a lixeira nas ruas”. Solicitava Dulce, naquele momento, que todos refletissem quanto a responsabilidade do educar e que, com humildade, e somente conscientes dessa responsabilidade seguissem em frente. Dizia a diretora do Raul Venturelli – “No elenco das profissões, a de professor é a mais importante e a de maior responsabilidade, porque, das personalidades que ele molda, só presta contas à própria consciência e a Deus”.

Sem confusões

Além de três filhos e duas noras, Dulce Guimarães deixa Mayra e Marina – duas netas pequeninas, que poderão melhor conhecê-las através dos escritos da avó: contos, crônicas, poemas… Sabe-se que elaborava uma autobiografia, os originais, por enquanto, não foram encontrados.

Como sempre desejou, seu velório e sepultamento foram acompanhados da ausência total de tumultos. Para que fosse feita a sua vontade, o enterro foi realizado já às 11h do domingo, quando muitos ainda desconheciam a notícia. Discreta até o último momento – se é que esse existe – Dulce fez valer sua verdade. Sua própria existência é que de melhor deixa a Capão Bonito. Uma história que Marina e Mayra não poderão deixar de conhecer.

06 e 07 de Agosto de 1.988

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